Se você chegou até esse texto, existe uma grande chance de que, em algum momento da sua vida, você tenha pesquisado por BDSM em um buscador online. Com certeza que para sua vida BDSMer e fetichista, a possibilidade de navegar em sites pornôs, se inscrever no FetLife, consumir todo tipo de conteúdo educativo sobre BDSM (lives, podcasts, vlogs, livros, posts etc.), tudo isso no grau de anonimato que te convém, são cruciais para que você experiencie e controle, de certa maneira, as fronteiras entre sua vida fetichista e sua vida baunilha.
Além da internet ser crucial no quesito anonimato, ela possibilita que fetichistas e BDSMers que não moram em grandes centros urbanos possam conhecer outras pessoas com mesmos interesses e predileções e que possam, também, de alguma forma, participar da comunidade. O BDSM, do modo que o experienciamos hoje, depende diretamente das redes e conexões que estabelecemos online.
Ainda que práticas fetichistas e práticas eróticas de dominação e submissão tenham sido registradas ao longo de séculos, o BDSM, pensado enquanto sigla para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo é bastante recente. O primeiro registro, que se tem da justaposição das iniciais dessa prática foi em uma entrevista de Fakir Musafar publicada no livro Apocalypse Culture em 1987. Nesse livro dedicado a ensaios sobre a crise cultural do fim do século XX, Musafar publicou um ensaio, Body Play, em que ele expõe sobre sua exploração de decorações e rituais corporais primitivos, baseados no que ele chama de body play — práticas que abordam a espiritualidade na arte, nas modificações corporais e no SM partindo do corpo como primeira instância (body-first). Acompanhada da introdução a body play, há uma entrevista a dada a Kristine Ambrosia e Joseph Lanz, que o questionam sobre masoquismo.
Ambrosia e Lanz: Você considera “masoquista” um termo negativo? É um termo válido?
Fakir Musafar: Para mim, é um termo positivo, apesar de ser visto com negatividade por nossa sociedade. É enganoso de certa forma. Há dois lados dessa coisa: nessa cultura, existe um masoquismo negativo. Você consegue identificar essas pessoas pelos termos que elas utilizam para se referirem a si mesmas. Existe três diferentes termos: existe S&M, B&D e D&S. Em S&M, as pessoas procuram algo físico, uma troca de poder expressa fisicamente. Você literalmente amarra alguém, usa correntes e chicotes. Há algo físico envolvido. B&D é quase sempre território heterossexual. É uma área nebulosa, alguns procuram algo físico, outros não. Mas tem um monte de provocação e tormentas mentais. Aí você chega na dominação e na submissão, e esse grupo é quase que completamente emocional, a fim de abuso verbal e humilhação. Enquanto entre os praticantes pesados de S&M, há pouca humilhação envolvida. Tudo pode ser apenas físico. O que pontuo é que para todos esses grupos, exceto para os S&M, não parece ser o que eles estão realmente fazendo. O que eu pratico é religioso e pertence a outras culturas. E acontece que estou praticando em uma cultura que não sabe que isso existe tem definição nenhuma para isso. No entanto, muitas pessoas deixam que isso chamem suas atenções como uma forma de arte. O que eu faço, eu chamo de “prática de corpo” porque você está usando o corpo para chegar em outro estado. (p. 107, tradução nossa)
Podemos considerar a justaposição que Musafar faz dessas palavras como a semente da futura sigla BDSM. Ainda que ele não utilize a sigla como utilizamos hoje, a ideia dos conceitos modernos estão ali. A própria explicação que o artista dá para os subgrupos é muito semelhante com nosso entendimento de BDSM atualmente.
Já o primeiro de registro do uso da sigla BDSM como utilizamos hoje é datada de 1991. Popularizada entre as décadas de 80 e 90, a Usenet (comumente considerada a precursora da Internet) era um meio de comunicação em rede em que os usuários podiam responder mensagens postadas nos leitores (newsreader), uma espécie de fórum/grupo de notícias. Um dos fóruns populares, era o alt.sex, criado em 1989 e voltado para discussões relacionadas a sexualidade humana.
Um dos subgrupos do alt.sex era o alt.sex.bondage, criado em 1991. Apesar do que o nome sugere, o subgrupo não era exclusivo para discutir bondage e abria espaço para que diversos assuntos relacionados a práticas sexuais alternativas fossem debatidos: “Como eu começo com S&M/bondage?” e “Por quanto tempo eu posso deixar prendedores nos mamilos de um amigo com segurança?” são exemplos das discussões realizadas pelos usuários do fórum.
Em meio a discussões do fórum, em uma troca de mensagens sobre a predileção dos usuários do fórum por práticas sexuais alternativas, Quarterhorse conta sobre como ele gostava de BDSM, enquanto sua esposa não. No quadro de mensagens, ele escreveu:
[…] Pelo o que vale a pena, eu sou casado a MUITO tempo; minha parceira não gosta de BDSM; sabe o que eu gosto, sabe o que faço (geralmente); não curte muito que eu goste de fazer essas plays de vez em quando, mas atura, desde que eu não faça em casa. Minha opinião é que tanto mentir para o parceiro sobre o que faz, quanto dizer ao parceiro que o que está fazendo é “doentio, perverso”, ou qualquer coisa do tipo, são muito mais destrutivos para um relacionamento do que qualquer outra coisa poderia ser. Eu não gosto de ópera; não vou. Ela não gosta de BDSM; não pratica. Funciona para gente.
(Trecho traduzido do inglês. A mensagem pode ser lida na integra aqui)
Especula-se que nessa mensagem Quarterhorse fazia referência a entrevista de Musafar, unindo todas as práticas a que ele se refere em uma sigla. Pesquisando nos arquivos do fórum pelo Google Groups, é possível encontrarmos muitas conversas que discutiam questões relacionadas às práticas de BD e SM[1], e quais as possíveis interações que poderiam existir entre essas duas esferas, fazendo referência a fala de Musafar. No entanto, o primeiro uso registrado da sigla é o de Quarterhorse e, pelos arquivos, é possível observar como o uso da sigla gradualmente se espalhou nas demais conversas do fórum. Entre o primeiro registro da sigla, em 19 de junho de 1991, e ano de 1996, quando o subgrupo soc.subculture.bondage-bdsm foi criado, foram registradas em torno de 9.300 discussões em que a sigla aparece.
Com a popularidade do alt.sex.bondage (a.s.b), a quantidade de usuários interagindo no grupo era alta, bem como a quantidade de spam, uma vez que não havia moderador para controlar a criação de novas postagens nos fóruns. Dentro da Usenet, existiam 8 grandes hierarquias de fóruns, sendo o alt. e o soc. duas dessas hierarquias. Cada hierarquia contava com regras, diretrizes e funcionalidades diferentes. Os subgrupos afiliados a hierarquia alt., por exemplo, eram abertos a todos usuários e não havia moderação, enquanto os subgrupos afiliados a hierarquia soc. contavam com moderador e robôs anti-spam. Dessa maneira, em 1996 foi criado um subgrupo alternativo dentro da hierarquia dos grupos soc., o soc.subculture.bondage-bdsm (s.s.b-b). Sobre esses dois grupos, Snarksy explica que:
S.s.b-b era semelhante ao a.s.b em muitas maneiras. Um grande número dos participantes assíduos eram pessoas que migraram do a.s.b a procura de um fórum com menos spam. (…) De muitas maneiras, o s.s.b-b era o a.s.b parte 2. (…) Como parte da hierarquia “soc”, soc.subculture.bondage-bdsm também tinha acesso a robôs anti-spam — uma vantagem, visto que o grande motivo da migração do a.s.b era a quantidade excessiva de spam. E s.s.b-b também lidou com uma cultura de internet no início diferente do que o a.s.b. Quando a.s.b começou, pouquíssimos espaços existiram na internet para se discutir fetiches. Em 1997, cópias do s.s.b-b FAQ apareciam na internet para as pessoas que não acessavam a Usenet, e os provedores de internet, como o AOL, proviam acesso a Usenet para uma grande audiência.
(A Brief History of Kink Online: 1996 — soc.subculture.bondage-bdsm)
Um dos diferenciais do soc.subculture.bondage-bdsm em relação ao alt.sex.bondage eram as diretrizes que controlavam que tipo de conteúdo e debates eram pertinentes ao grupo. No geral, o fórum estava aberto para discussões sobre práticas, troca de experiências, literatura BDSM, socialização, humor, anúncios de eventos e ativismo político relacionado ao BDSM. Nas regras oficiais do grupo, a moderação explica que o objetivo ali era de:
Promover um fórum seguro e aberto, onde pessoas de qualquer gênero ou orientação sexual possam engajar em discussões, oferecer e receber apoio, socializar e fazer trocas relacionadas aos diversos tópicos coletivamente referidos como “BDSM” (Bondage & Disciplina, Dominação & Submissão, Sadismo & Masoquismo).
(Charter)
Com a perda de popularidade da Usenet no final da década de 90 e início dos anos 2000, o soc.subculture.bondage-bdsm deixou de ser o principal espaço online onde praticantes procuravam por informação. Como legado, a seção de pergunta frequentes foi propagada em diversos outros espaços de estudo e discussão de BDSM na internet. Essa seção, o alt.sex.bondageFAQ, consistia em uma lista de perguntas feitas com bastante frequência que foram selecionadas e respondidas pelo moderador Rob Jellinghaus.
Com essa primeira forma de organização online de praticantes de BDSM, a popularização do acesso à internet permitiu que outros modos organizacionais se estabelecessem. Alguns marcos importantes para o BDSM online[2], além da rede alt.sex.bondage e soc.subculture.bondage-bdsm nos anos 90, foram a criação do kink.com e do AOL Instant Messenger, em 1997; a criação de uma página sobre BDSM na Wikipédia, em 2001 e a criação do FetLife, 2008.
No Brasil, a lista de perguntas foi traduzida pelo site Desejo Secretos. Após entrarem em contato com Rob Jellinghaus, a equipe do site se tornou a tradutora oficial do alt.sex.bondageFAQ para o português. Todo conteúdo do Desejos Secretos, incluindo a lista traduzida, foi recuperado e compilado pela @equinanur, do @bdsm-de-iniciante, e está disponível para download aqui.
Com o intuito de agilizar o acesso aos textos da lista, ao longo dos próximos dias, os textos serão publicados aqui no @BDSM.Ed. Ao todo, são 32 textos, traduzidos originalmente pelo Desejos Secretos e revisados por nós.
2. O que é uma “cena” e o que é uma “negociação”?
05. Quais as bases para um SM emocionalmente e fisicamente seguro?
6. Todo mundo é tanto “top” quanto “bottom”? O que é um “switch”?
7. Como eu posso aprender a ser um bom “top”?
8. Como eu posso aprender a ser um bom “bottom”?
9. O BDSM é sexual?
10. Por que o Bondage é divertido?
11. Por que chicotear (whipping) é divertido?
12. O que é body piercing? O que é “C&B;” ou tortura genital?
13. O que é o cutting/play piercing/burning/branding e electrical play? O que são “bloodsports”?
14. O que é o controle de respiração? É seguro fazer alguém perder os sentidos?
15. O que é “chuva dourada”? E “scat”?
16. O sexo anal é seguro? Por que as pessoas o praticam?
17. O que é “fisting”?
18. A maneira como eu jogo pode ser chamada de SM “real”? Aliás, o que é o SM “real”?
19. E sobre couro/látex/saltos altos/corpetes/outros fetiches?
20. E a respeito de depilar (“raspar”) os pelos do corpo e/ou travestismo?
21. Por que estou defendendo o SM?
22. O SM é degradante ou abusivo? A maioria do pessoal SM foi abusado?
23. Por que o SM é um tabu? O SM não é natural, ético ou não saudável?
24. O bottom não está sempre no controle?
25. Alguém pode ser “realmente” escravo de outra pessoa?
26. O que são “codes” (códigos)?
27. Minhas fantasias me assustam. E se eu me envolver muito com o SM?
28. Eu quero ir a uma play party; como posso saber sobre e/ou fazer alguma?
29. Quero comparecer a uma “play party”; qual é a etiqueta?
30. Qual o propósito dessa coisa toda de anonimato?
31. O pessoal SM está sujeito a constrangimentos políticos e sociais?
32. Quais os assuntos que são e não são aceitáveis no s.s.-b?