Tem um pentelho no meu chicote: a higienização do sexo BDSM

Margot
9 min readMar 5, 2021

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Não importa se você está no BDSM a uma semana ou a 30 anos: certamente que você tenha escutado inúmeras vezes que “BDSM não é sobre sexo”.

Imagino que ao escutar isso pela primeira vez, assim como eu, você tenha pensado “que interessante!” e sentido que esse quase-mantra deu um significado todo diferente para sua prática… Não é sobre sexo, é sobre algo muito mais louvável! Não é sobre sexo, é sobre entrega? Não é sobre sexo, é sobre confiança? Não é sobre sexo, é sobre responsabilidade, compromisso etc.? Não importa, apenas que não é sobre sexo e sim sobre algo mais digno.

Mais uma vez, enquanto BDSMers, nos encontramos desfazendo mais um balaio de gatos… A questão do BDSM ser ou não sobre sexo é mais uma das muitas questões que se encontram emaranhadas entre o discurso médico, moralista, jurídico e religioso. A negação da característica sexual do BDSM é reflexo de uma sociedade em que o sexo é visto como algo negativo, impuro e pecaminoso.

Higienismo, Sexualidade e BDSM

Com o avanço da medicina moderna no final do século XIX, se desenvolve, também, um discurso em prol da assepsia, em que se privilegia a higiene acima de tudo. Higiene entendida aqui não como uma preocupação com limpeza, mas sim como uma preocupação pela por uma saúde e um bem-estar idealizados.

Apesar de não parecer problemático e soar como uma preocupação legítima (afinal, o que teria de tão ruim em se privilegiar comportamentos saudáveis), esse discurso higienista abre espaço para estigmatizar grupos vulneráveis socialmente, uma vez que o que é considerado saudável está sujeito às percepções sociais. Isso quer dizer que aquilo que é entendido como saudável depende das crenças sociais de determinados grupos, em determinadas épocas.

Por exemplo, algumas dietas alimentares restritivas já foram consideradas saudáveis ao longo do século passado e hoje já não são mais — uma mudança de percepção resultante de pesquisas científicas e da mudança de padrões estéticos. Já no âmbito da sexualidade, a homossexualidade, por sua vez, era considerada pelo discurso psiquiátrico como doença, o que deixou homossexuais à mercê de tratamentos clínicos de conversão, uma vez que se é uma doença, pode ser curado.

Outro exemplo de comportamento que já foi considerado como doença é masturbação. Em O Sexo Solitário, Thomas Laqueur explica que antes de 1712, a masturbação não era uma questão que recebia atenção socialmente. Apenas com a publicação de Onania: or the heinous sin of self-pollution (Onania: ou o hediondo pecado de auto poluição) que a masturbação se tornou objeto de estudo da Medicina e passou a ser vista como uma doença.

…masturbação é uma questão de higiene social que toca na saúde mental individual; representa a conjectura dos interesses públicos e privados.” (O Sexo Solitário, página 84)

A partir desses exemplos acima, é possível perceber que por mais científico e imparcial que a medicina possa parecer, ela não existe em um vácuo social. Ela é exercida por médicas e médicos que nascem, crescem e vivem em sociedade e que lidam diariamente com questões políticas, econômicas, religiosas, raciais, estéticas, de gênero e de sexualidade. Os fatos científicos não mudam, o que muda é como eles são usados para oprimir (ou não) grupos marginalizados.

Na guerra contra a AIDS, por exemplo, ainda que médicos tenham encontrado casos entre homens e mulheres heterossexuais e bissexuais, a medicina e a mídia associaram a doença a homens gays. Nessa reportagem de 1982, New Homosexual Disorder Worries Health Officials (Novo distúrbio homossexual preocupa autoridades da Saúde), a AIDS é apresentada da seguinte maneira:

“A causa do distúrbio é desconhecida. Pesquisadores o chamam de A.I.D., para doença imunodeficiente adquirida (acquired immunodeficiency disease), ou GRID, para imunodeficiência relacionada a gays (gay-related immunodeficiency).”

“Dr. Lawrence D. Mass, um médico de Nova Iorque, disse que “pessoas gays, que o estilo de vida consiste em encontros sexuais anônimos, terão que repensá-lo seriamente.”

Mesmo que, de fato, houvesse um maior número de casos entre homens gays do que entre pessoas de outros gêneros e orientação sexual, esse grupo foi estigmatizado pela AIDS por se tratar de uma minoria sexual. As implicações disso foram que os empenhos científicos para descobrir como se dava a transmissão do vírus e sua possível cura não foram tão diretos quanto poderiam ter sido, visto que políticas de saúde públicas foram indiscutivelmente enviesadas.

A repercussão da AIDS para a comunidade fetichista foi o fechamento das casas de banhos e clube de sexos. A epidemia da AIDS é um marco muito bem definido no antes e depois dos espaços públicos para práticas fetichistas porque muitos grupos anti-gays e anti-fetichistas enxergavam uma relação causal entre ser gay/fetichista e ser diagnosticado com AIDS.

A comunidade de fisters é um exemplo de grupo que sucumbiu a pressão social causada pela guerra a AIDS. Como Gayle Rubin aponta em “As Catacumbas: um templo dos cus”, as primeiras diretrizes de sexo seguro, que apareceram em 1984, listavam o fisting como prática de risco; já o sexo anal com camisinha era considerado uma prática relativamente segura. A incoerência em não sugerir que o fisting fosse praticado com luvas de látex é evidência de como não havia preocupação em se propagar informação da maneira mais imparcial o possível.

As tentativas de fechar as casas de banho e os clubes de sexo representou uma alternativa estratégica para lidar com a AIDS. Ao invés de promover mudanças no comportamento sexual para diminuir o risco de transmissão, a decisão de fechar esses espaços enfatizou a redução de oportunidades de homens gays fazerem sexo. Aqueles que propuseram o fechamento argumentavam que seus projetos era uma medida óbvia para salvar vidas. O debate sobre o fechamento desses espaços foi representado de tal forma que rivalizaram as questões de saúde pública contra o direito civil. Essa perspectiva simplificou e distorceu a situação. Os esforços para o fechamento desses espaços abriram precedentes perigosos para que o Estado perseguisse estabelecimentos e comportamentos gays. O fechamento em massa eliminou a oportunidade de educação sexual, bem como as oportunidades para sexo. Com o fechamento, os praticantes foram para as ruas, becos e parques, que são espaços, obviamente, menos seguros e limpos do que os clubes que eles perderam. (In: As Catacumbas: um templo dos cus)

Como consequência da epidemia da AIDS, se instaurou uma deliberada perseguição a homossexuais, em especial, a gays e lésbicas fisters e SM. Em um primeiro momento, não havia preocupação em separar sexo do SM e do fisting porque não havia necessidade de mostrar essas práticas como ‘limpas’. Os fetichistas deliberadamente reconheciam que o que praticavam era sexual, mesmo se não houvesse genitais envolvidos.

Nessa interseção entre medicina e sexualidade surge mais um esforço em criar uma identidade palatável para os baunilhas. Em meio a uma epidemia que crescia, principalmente, às custas de atividades sexuais, era imperial que se mostrasse que BDSM era mais que sexo. Era estilo de vida.

Se não é sobre sexo, é sobre…?

De maneira alguma eu vou me propor a responder sobre o que é e sobre o que não é o BDSM — especialmente porque entre BD, DS e SM, as possibilidades do que se trata o BDSM são inúmeras para cada uma das pessoas que o pratica. No entanto, eu gostaria de reivindicar a noção de que BDSM não é sobre sexo.

A noção de que BDSM não é sobre sexo advém da intenção de tornar tudo aquilo que é ligado a sexualidade o mais estéril e higiênico o possível. Em uma sociedade em que tudo que é ligado a sexualidades não-normativas é depravado, indecente, imoral e doentio, tentar afastar o BDSM disso, parece uma saída lógica: BDSM não seria sobre sexo, desejo, vontade, tesão, prazer, gozo; seria sobre entrega, respeito, responsabilidade, compromisso. Não é sobre depravação, indecência, imoralidade e patologia; é sobre um punhado de valores gloriosos, respeitáveis e bem intencionados.

Por trás da lógica de separar BDSM e sexo, o que impera é a higienização das práticas. Ao longo da história, as diversas maneiras de se expressar sexualmente sempre estiveram submetidas a mecanismos de controles social, religioso, médico e jurídico, o que resulta, de uma maneira ou de outra, em repressão e estigmas sexuais.

É quando tem pau envolvido…

Para refutar a ideia de que BDSM não é sobre sexo, é preciso que pensemos exatamente sobre o que nos referimos quando falamos sobre sexo. Imagino que, para inúmeras pessoas, sexo se resuma apenas a sexo oral, sexo anal e sexo vaginal, com ênfase na penetração do pênis na vagina ou no ânus.

No entanto, fetichistas sabem melhor do que ninguém que sexo vai muito além disso. Ainda que própria noção de quais partes do corpo são ou não sexuais seja resultado de processos sócio-históricos, fetichistas gozam e tem orgasmos das mais variadas maneiras, independentemente do que do é dito ou não como sexual.

Os órgãos sexuais não existem em si. Os órgãos que reconhecemos como naturalmente sexuais já são o produto de uma tecnologia sofisticada que prescreve o contexto em que órgãos adquirem sua significação (relações sexuais) e de que se utilizam com propriedade, de acordo com a “natureza” (relações heterossexuais). Os contextos sexuais se estabelecem por meio de delimitações de espaço-temporais oblíquas. (PRECIADO, Paul B. In: Manifesto Contrassexual, p. 31)

Entre a comunidade gay, por exemplo, Gouinage é visto com muito maus olhos. Essa prática sexual que privilegia o corpo todo como zona erógena — tirando o foco da penetração e dos papéis de passivo e ativo — ilustra como a tentativa de definir sexo sempre é perpassada pelos órgãos sexuais.

Nessa perspectiva de que sexo não se limita a penetração, tudo aquilo tocante a sua sexualidade, a forma que você sente tesão, desejo e prazer é de ordem erótica. Muitas vezes, a negação disso fala bastante sobre as instâncias de não aceitação que muitos praticantes ainda se encontram.

Além de evidenciar a não aceitação de alguns, essa noção reforça os ideais heteronormativos que regem relacionamentos, em especial, os monogâmicos. Na esfera baunilha, a ideia de que sexo por sexo é vulgar e desrespeitoso consigo mesmo ainda é bastante forte (especialmente se você for mulher). Essa noção se espraia para o BDSM, criando a noção de que sexualizar o BDSM é algo desnecessário e incompatível com o “verdadeiro” BDSM.

Uma atividade em que participantes erotizam sensações ou emoções que seriam desagradáveis em contextos não-eróticos.

Já ouvimos algumas objeções a palavra ‘erotizar’ nessa definição — nem todo mundo que pratica S/M conecta suas atividades a sua sexualidade genital. Mas nós preferimos usar a palavra ‘erótico’ para nos referir a um vasto espectro de emoções e sensação que são excitantes, despertadoras, esclarecedoras e estimulantes — mesmo que não te deixem de pau duro ou de buceta molhada.

(The New Topping Boook, Dossie Easton & Janet W. Hardy)

Reconhecer e legitimar o BDSM através do sexo é uma questão de autoafirmação contra ideias moralistas que ainda estão enraizadas na nossa comunidade. Olhar o para o BDSM com olhos baunilhas e limitar a experiência BDSM para que seja palatável às prateleiras de sex shop é um desserviço a nós mesmo. É necessário que nossos limites sejam os limites da responsabilidade e da consensualidade, e não de uma moralidade que não consegue definir uma noção de prazer sem associar prazer com tudo que há de errado no mundo.

O pentelho no meu chicote

Reconhecer o sexo como intrínseco ao BDSM não significa agir sem responsabilidade com quem praticamos. Não é uma questão de permissividade com nossas relações, mas sim uma questão de autoaceitação e autoentendimento. O pentelho nos chicotes dos BDSMers é entender que queiramos ou não, nós não nos encaixamos nos padrões sexuais ditos como convencionais socialmente. Esconder o sexo debaixo do nosso tapete não nos tornará mais palatáveis para o olhar baunilha porque nós não somos. BDSM é transgressão.

O nosso recurso nesse impasse todo é assumir orgulhosamente o que fazemos: eu apanho e bato pela vontade, eu amarro e sou amarrada pelo tesão, eu domino e sou dominada pelo desejo, eu me entrego e eu cuido pelo prazer. E eu gozo. Pelo pau, pela buceta, pelo cu, de mente e de corpo.

Sobretudo, eu respeito a mim e a meus pares. Eu reconheço que tudo que fazemos é em nome do nosso desejo, do nosso prazer, do nosso gozo e não há do que nos envergonharmos disso.

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